O setor de entrega de comida pronta via aplicativos perdeu empresas importantes, embora a receita desse mercado tenha dobrado nos últimos três anos, chegando a R$ 3,3 bilhões em 2022. Atrair novas empresas e manter as atuais, em um ambiente de competição justa, é o que se espera das novas regras ditadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ao restringir acordos de exclusividade da líder iFood com restaurantes e bares. Mas aplicativos de menor porte ouvidos pelo Valor estão preocupados.
Desde janeiro de 2022, quando o Valor fez um panorama do setor, saíram do mercado: Uber Eats, James Delivery, do grupo GPA, e Alfred Delivery, que passou a fazer logística de entrega em outros segmentos. No início do mês, a 99Food, do grupo Didi, também enxugou o negócio, passando a oferecer somente a plataforma on-line, sem a frota própria de entregadores – agora, cada estabelecimento cuida da sua entrega ao cliente.
As novas regras previstas no Termo de Cessação de Conduta (TCC) firmado pelo iFood no Cade, em 8 de fevereiro, também objetiva garantir um ambiente de justa competição aos aplicativos (apps) que já atuam no mercado, a maioria deles em cidades com menos de 500 mil habitantes, onde reside 68% da população do país.
As medidas principais estabelecem: fim de contratos exclusivos com redes que têm mais de 30 lojas, limite de até 8% de estabelecimentos exclusivos em cidades com mais de 500 mil habitantes; e teto de 25% do volume bruto transacionado (GMV, na sigla em inglês) em contratos exclusivos no país.
Após tornar-se um hábito dos brasileiros no auge da pandemia da covid-19, o setor segue crescendo. A receita dos apps de entrega de comida foi de quase US$ 400 milhões em 2019, segundo estudo da Statista, incluindo pedidos via telefone, site, WhatsApp e outros canais. Isso equivale a pouco mais de R$ 1,5 bilhão, em cálculos do Valor Data. Em 2022, foi a R$ 3,3 bilhões (US$ 638,3 milhões) e neste ano pode chegar a R$ 3,9 bilhões (US$ 766,3 milhões).
Outro levantamento recente da Statista mostra o iFood com 76% de participação entre as plataformas mais populares no país, seguido por WhatsApp (6%), 99Food (2%), Aiqfome (2%) e Rappi (1%). Os 13% restantes estão distribuídos entre outros aplicativos.
Para plataformas que operam em cidades menores, o limite de 25% do faturamento bruto do iFood com exclusividades no país não é suficiente para equilibrar o mercado. “O limite das vendas [brutas] exclusivas será importante, mas precisamos entender como será o monitoramento disso”, diz João Neves, cofundador e diretor executivo do Pede.ai. Fundado em 2017, em Petrolina (PE), o aplicativo atua em cidades de 20 mil a 110 mil habitantes com foco em Nordeste, Norte e Centro-Oeste – o iFood opera em 70% dessas regiões. “Nessas cidades, a regra de 25% pode alocar uma boa parte da exclusividade junto ao iFood”, diz Neves.
No fim de 2022, o Pede.ai apostou na fusão com a Aiboo, app do Espírito Santo. A atuação da plataforma foi ampliada de 150 para 238 cidades. Neves avalia como positivo o fim da exclusividade do iFood com grandes redes de restaurantes. “Muitos franqueados queriam operar com a Pede.ai, mas a exclusividade não permitia”.
O corpo a corpo com estabelecimentos locais e a diversificação do portfólio de entrega para outros produtos e serviços são estratégias dos apps para ganhar força nas regiões de atuação. O UaiRango, app focado em cidades com até 100 mil habitantes no interior da Bahia, Minas Gerais e São Paulo, busca reforçar sua área de atuação cobrando taxas menores dos restaurantes locais, em relação às praticadas pelo iFood, seu principal concorrente. “Procuramos defender a nossa área de atuação até mais do que expandir”, diz Marcelo Geromin, sócio fundador do UaiRango. Desde o ano passado, o app incluiu itens de supermercado, água e gás nas entregas.
Na visão do executivo, o acordo entre Cade e iFood favorece mais o Rappi, do que os aplicativos com foco em cidades do interior. “O acordo beneficiou diretamente o Rappi, que opera em grandes centros onde uma fatia enorme do fluxo de pedidos vem das grandes redes”. Segundo Geromin, o aval do Cade para que o iFood possa firmar exclusividade com estabelecimentos que são fortes em cidades de até 100 mil habitantes “continuará sufocando outros aplicativos no mercado”.
O Robin Food, aplicativo criado por empreendedores de Juiz de Fora (MG), que oferece dinheiro de volta (cashback) quando se faz um pedido, também tem o iFood como rival em toda a sua área de atuação. Em maio de 2019, o Robin Food enviou uma denúncia ao Cade pedindo uma investigação sobre as ofertas de cupons de descontos na plataforma. “Questionamos a estratégia de descontos que gerava uma política de preços predatória”, diz Rafael Resende, cofundador e diretor do Robin Food. O Cade arquivou o pedido argumentando falta de embasamento para a investigação.
O TCC, segundo Resende, não ataca outras táticas de “exclusividade velada” do iFood como a oferta de cupons de descontos e o posicionamento dos restaurantes em resultados de buscas.
O prazo para o encerramento dos acordos de exclusividade atuais do iFood com grandes redes também foi criticado pelo executivo. “Esse período de seis meses é inviável porque isso está se arrastando há muito tempo e já gerou prejuízo para a concorrência como um todo, incluindo a saída de um app relevante no mercado como a Uber Eats”, diz Resende.
O Aiqfome, da varejista Magazine Luiza, reduziu a equipe em 70 pessoas na semana passada. Explicou que os cortes “fazem parte de um processo de reorganização das estruturas, após a integração com os negócios da ToNoLucro, GrandChef e Plus Delivery, empresas adquiridas nos últimos dois anos. O Aiqfome não informou dados atualizados sobre a operação.
Além de estimular a entrada de novos concorrentes, após a saída de empresas importantes do segmento, o TCC precisa surtir efeito em cidades menores, diz Diogo Rosenthal Coutinho, professor de direito econômico da Universidade de São Paulo (USP). “Importante que o Cade observe entradas em cidades grandes e pequenas também”, diz ele.
Pedro Saulo Andrade, cofundador do AppJusto, app de menor porte que atua na capital paulista desde agosto de 2021, defende o fim dos acordos de exclusividade no setor. “Não adianta muito o restaurante sair de um ‘carcereiro’ e pular para outro”, diz. “O estabelecimento precisa estar nas plataformas que sejam melhores para ele, sem nenhum tipo de restrição”.
O Rappi, principal concorrente do iFood, redireciona o foco após o TCC. “A gente sempre teve no Brasil um mercado potencial, mas antes dessas regras, a alocação de investimentos estava direcionada a outras áreas”, disse Tijana Jankovic, presidente da Rappi no Brasil. O foco é ampliar a oferta de estabelecimentos na plataforma e, consequentemente, de assinantes.
“Agora, com as grades redes [de restaurantes] desbloqueadas, conseguimos oferecer aos usuários ‘prime’ o conteúdo de restaurantes que precisavam”, diz a executiva. Segundo a empresa, 70% de seus pedidos são de assinantes que pagam entre R$ 20 e R$ 35 por mês.
Jankovic afirma que a empresa vem reduzindo acordos exclusivos com estabelecimentos, equivalentes a 1% da base atual de restaurantes e bares parceiros e que geram 4% do faturamento do segmento.
O iFood informou que “os estabelecimentos em destaques no aplicativo são definidos a partir do histórico de pedidos e preferências dos próprios clientes” e que “não há relação comercial na ordem de exibição dos estabelecimentos no aplicativo”. Acrescentou que considera “equivocado declarar que o TCC não terá efetividade em cidades menores uma vez que o limite de GMV imposto é nacional e, portanto, considera todas as cidades em que operamos”.
A empresa também destacou que, em muitas cidades menores, “o iFood ainda é um entrante, trabalhando para atrair restaurantes, consumidores e entregadores e competindo com concorrentes já estabelecidos”.
Fonte: Valor Econômico